top of page

Onde estão os Escritores e Palestrantes Negros ou Mulatos no Brasil? Por J.Marins


Dia desses, durante uma palestra que ministrei em uma Faculdade de Direito, na cidade de Salvador, recebi um inusitado questionamento que me fez parar e refletir profusamente antes de responder.


Era um sábado. Chuvoso, com forte umidade no ar, uma chuva fresca, reconfortante, alvissareira e, de certa forma, fértil e enebriante. Indubitavelmente, típico e propício ambiente para a criação. Dia em que eu não realizava o mister, o desiderato atinente ao meu cargo: a realização de audiências, como magistrado que também sou.


Voluntariamente, em atenção ao convite de um amigo Coordenador da referida Faculdade, compareci àquele antigo prédio, naquele bairro tão antigo quanto, onde funciona, desde antanho, a instituição de ensino. Dirigia a palestra como sempre. Lado a lado, caminhando entre eles, interagindo, olhando nos olhos dos presentes, como um igual, vez que essa é a didática que aplico já há mais de duas décadas.


A pessoa que lançou a surpreendente indagação foi uma mulher. Moça ainda. Ruiva, com ar faceiro. Óculos arredondados, inquisitivos. Mãos com as palmas abertas, voltadas para cima. Foi direta como uma flecha. Certeira feito petardo. Prática como um dicionário. Terminava um dos tantos causos donde vinham as minhas origens culturais e profissionais, quando surgiu a pergunta. “Professor”, ela disse num tom mitigado, “onde estão os escritores e palestrantes negros ou mulatos?”.


Que ilação alcancei? Qual corolário teria? Responderia com dados estatísticos? Discorreria acerca das dificuldades de acesso ao ensino de qualidade? Ampliaria seu questionamento, colocando no rol, também, os roteiristas, dramaturgos, intelectuais, e, esticando mais ainda para atender a modernidade, os youtubers e os influencers da rede mundial de internet?



Hoje, se comemora o aniversário de Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista negra do Brasil, nascida em 11 de outubro de 1825, o que motiva mais ainda a presente crônica.

Antes os negros e mulatos escreviam aos borbotões, e depois desapareceram. Onde está o espaço para novos Lima Barreto, Luis Gama, Carolina de Jesus, José do Patrocínio, Cruz e Souza, o Cisne Negro, sem olvidar Machado de Assis, o fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras? Onde estão os palestrantes e intelectuais como o professor Milton Santos?


Ah, talvez respondam, existe o Lázaro Ramos, a atriz Elisa Lucinda e a Djamila Ribeiro. Sim, de fato. Mas, imersos num mar de centenas ou milhares de outros, que não são negros ou mulatos. Proporcionalmente, nações originalmente brancas, como Portugal, Espanha e Inglaterra, têm mais escritores e palestrantes de origem negra do que o Brasil.


Por óbvio, esta crônica não se trata de crítica, mas sim de busca por respostas. Esta missiva não se refere a demérito quanto a outras raças. Lógico que os autores, escritores, roteiristas, editores, palestrantes de origem branca são excelentes e têm suas qualidades e espaços consolidados. Claro, também, que esse fenômeno, que ora dou a roupagem de ‘desaparecimento’, se aplica às pessoas de outras origens, como os indígenas, orientais, árabes, libaneses, hindus, asiáticos em geral, os quais, à semelhança aos negros e mulatos, quase não existem nas prateleiras das livrarias, nos programas, nas palestras, nos canais no Youtube.


Onde está a origem desse ‘esquecimento’? Nas escolas? Talvez. Quantos professores indicam O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, a deliciosa ficção com o nacionalista personagem que desafia Floriano Peixoto, o alagoano, então segundo presidente da instaurada e novíssima República, sempre mencionado como o General de Ferro?


Livros como esse, de Lima Barreto, levado a público, pela primeira vez, em folhetins, publicados entre agosto e outubro de 1911, na edição da tarde do Jornal do Commercio (assim mesmo, com dois 'M'), do Rio de Janeiro, não deveriam estar nas mãos dos alunos? Não deveriam figurar nas provas e nos comentários dos professores, possibilitando aos estudantes as condições para transitarem entre a crítica do presente que vivemos com o entendimento do começo da nossa República, através de alguém que dominava as letras e que hoje não é encontrado na internet, quiçá estando relegado ao ostracismo numa mofada prateleira de Sebos?



Será que não existem mais negros ou mulatos capazes de enredar ficções, inclusive fora do lugar comum de favelas ou livros relacionados à etnia, como a de Lima Barreto, onde o seu Policarpo Quaresma era internado por conta de que ele era nacionalista extremado e queria que a língua dos índios fosse a língua nacional? Será que aos negros e seus descendentes está reservado o nicho da música, da dança e, eventualmente, do cinema ou da Tv, em reduzidos espaços pouco divulgados?


Negros brasileiros não podem escrever sobre distopias tecnológicas, sobre zumbis, sobre as guerras mundiais, sobre não-ficção, autoajuda, sobre ficções históricas, policiais ou científicas, ficando destinados a escreverem somente acerca de temas ligados à sua raça, isso quando espaço lhes é dado? Pessoas de origem negra não podem ser palestrantes, ministrar cursos de coaching, de oratória ou similares? Quantos palestrantes negros você conhece? Quantos autores negros você já leu ou viu os livros deles e delas em livrarias? Quantas editoras se dispõem a publicar suas obras? Em quantas palestras ou cursos ministrados por negros (as) ou mulatos(as) você já foi? Quantos canais de Youtube têm pessoas dessa origem os capitaneando?



Sim, eu sou um autor de origem negra. Sim, tenho ficções e não-ficções publicadas, algumas, inclusive, por importantes selos editoriais. Sim, fui premiado várias vezes. Sim, eu também sou jornalista há 30 anos, juiz federal há 12 anos, professor há 15 anos, palestrante há 21anos, sociólogo e roteirista. Sim, minha escrita vai de livros infantojuvenis a obras baseadas em ficção científica como BLINDFOLDED ou A REGRA, em ficção policial ou ficção de suspense, como A LETRA MORTA, também sobre distopia fantástica a exemplo de OFF, OS ÚLTIMOS e A SENHORA DA MONTANHA, ou, ainda, a ficção histórica como A IRMANDADE DA COBRA QUE FUMA ou A CASA DOS FUNDOS, este último referente ao célebre discurso de Winston Churchill, onde o líder britânico, demonstrou ao mundo que jamais se renderia ao poderio nazista, passando por distopias e livros-guias como HEH - HISTÓRIAS E ESTÓRIAS DA HUMANIDADE, sobre o que há de verdade entre a história que aprendemos e as teorias da conspiração existentes na internet.


Sim, eu sei quantos pedregulhos precisei e ainda preciso retirar da trilha, para torná-la transitável. Mas, como o Lázaro Ramos, eu sou um. Mais um. Não famoso como o ator global Lázaro, tão soteropolitano quanto eu.


Enquanto isso, lá no evento, na palestra na faculdade de Direito, a aluna ruiva, alta e curiosa, educadamente, compreendeu as ilações que fiz para lhe responder. Compreendeu, mas discordou. E resumiu sua indignação numa nova questão, cuja resposta transfiro para quem estiver lendo esta crônica: “quando findará o apartheid cultural e intelectual brasileiro, professor?”





Sou J. MARINS

Escritor de ficção e não-ficção, Palestrante, Jornalista, Professor, Sociólogo e Juiz Federal. Cofundador do Movimento Libertologia, através do qual ministro cursos e treinamentos de Oratória e Media Training